27 de fev. de 2011

10 perguntas - 10 respostas




Promessa é dívida. Conforme prometi na minha mais recente investida na terra-de-ninguém dos debates sobre evolução, criacionismo e design inteligente, a coluna desta semana é dedicada ao que poderíamos chamar de dúvidas criacionistas por excelência – as perguntas que levam muita gente a questionar a validade científica da teoria da evolução.
As dez perguntas (todas com respostas, graças a Deus) selecionadas abaixo têm em comum pontos de partida equivocados, como pretendo demonstrar e espero que vocês percebam. Em geral, ou refletem uma compreensão distorcida do que é o método científico, ou tentam impor à natureza (e, em especial à biologia) uma concepção de finalismo, de "metas a serem alcançadas", que é completamente estranha a ela. Eis por que é urgente esclarecê-las.
1)Se o homem evoluiu do macaco, por que ainda existem macacos?
Que tal se a gente colocar a questão de um jeito um pouquinho menos voltado para o nosso próprio umbigo, um tantinho menos antropocêntrico, como gostam de dizer os filósofos? Lá vai: se os macacos sem rabo evoluíram dos macacos com rabo, por que ainda existem macacos sem rabo? Se os anfíbios evoluíram dos peixes (de um subgrupo do que conhecemos como peixes, para ser mais exato), por que ainda existem peixes?
Deu para reparar que o problema talvez só exista porque, no caso específico do homem moderno, tendemos a estranhar o fato de ainda existirem macacos simplesmente porque nos consideramos "superiores" a eles? Por outro lado, não há nada intrinsecamente "melhor" num símio sem rabo se comparado a um com rabo, e o mesmo vale para um sapo posto lado a lado de um peixe. Estamos apenas falando de adaptações diferentes para problemas diferentes.
Não se deixe enganar: é óbvio que não descendemos de nenhum primata vivo hoje (com exceção dos nossos próprios pais e avós humanos), mas nossos ancestrais remotos certamente seriam chamados de "macacos" caso pudéssemos ficar frente a frente com eles. Como qualquer outra espécie, eles começaram a trilhar um caminho evolutivo separado do seguido pelos demais primatas porque uma combinação de alterações genéticas e pressões ambientais os levaram a se diferenciar.
O importante é que essa diferenciação só se converteu em uma brutal vantagem reprodutiva sobre as demais espécies do planeta – a mesma que nos transformou em quase 7 bilhões de indivíduos hoje – há pouquíssimo tempo. Há apenas 100 mil anos, nossa população pode ter sido de poucos milhares de indivíduos, tão baixa quanto a dos orangotangos que estamos quase extinguindo. Trocando em miúdos: o incentivo evolutivo para "virar gente" nunca foi tão sedutor assim para nossos parentes. Continuava valendo a pena ser macaco, digamos assim.
Ademais, eles estavam envolvidos com outras demandas genéticas e ambientais. Cada espécie parece contar com suas próprias tendências evolutivas internas, canalizadas pela maneira como seus indivíduos se desenvolvem desde a fecundação. Uma vez que os caminhos evolutivos se bifurcam, é bobagem esperar que se sobreponham com exatidão em algum ponto do futuro. De qualquer maneira, vale o lembrete: o importante não é ser "melhor" em nenhum sentido antropocêntrico; deixar mais descendentes e se adaptar a determinado ambiente é o verdadeiro motor da evolução. Se uma espécie conseguir isso encolhendo o cérebro até ele ficar do tamanho de uma ervilha, tá valendo.
2)Por que o ser humano parou de evoluir?
E quem disse que parou? Não dá para confundir nossa incapacidade de ver o quadro geral e saber "para onde estamos indo" em termos evolutivos com a falta de qualquer transformação. A biologia de uma espécie muda essencialmente em termos moleculares: pequenas alterações em genes, ou elementos que regulam genes, vão se acumulando até transformar coisas como resistência a doenças, tolerância a certos ambientes ou alimentos e morfologia corporal (esse último caso é o que consideramos como exemplo clássico de evolução, mas mudanças “invisíveis” não são menos evolutivas).
Ora, estamos descobrindo que há sinais claros e relativamente recentes de alterações evolutivas entre seres humanos. Antes de 5.000 anos atrás, nenhum adulto do mundo era capaz de digerir leite; hoje, europeus e nativos da África Oriental conseguem fazer esse truque. Doenças como a gripe não matam mais quase ninguém no Ocidente, embora ainda sejam capazes de semear o pânico entre populações indígenas do mundo todo. Estamos falando de alterações genéticas vantajosas sendo incorporadas ao patrimônio evolutivo humano, enquanto variantes menos versáteis são eliminadas. Portanto, não estamos parados e, provavelmente, nunca estaremos.
3)Por que a evolução não torna os seres vivos imbatíveis e imortais?
Porque coisas boas custam caro, e invulnerabilidade e imortalidade são caríssimas. Todo organismo, e em especial aqueles que se reproduzem de forma sexuada, como nós, precisam fazer uma escolha entre investir em seu próprio "soma" – jeito charmoso de designar o corpo daquele organismo – e gastar recursos com sua própria reprodução.
Vamos supor que ele "decida" (inconscientemente, claro) despender enormes energias bioquimicas para se manter vivo e saudável. Adversários dele, porém, investem em imensas ninhadas de filhotes, conseguindo, dessa maneira, sugar o ambiente até a última gota, de forma que não sobra nada para o candidato a invulnerável. O resultado mais provável? Ele morre de inanição. E sem deixar descendentes. Ou seja, perdeu feio no jogo evolutivo.
É nessa corda bamba constante que todos os seres vivos existem. Enquanto ela valer, não faz sentido pensar em perfeição, mas vale muito a pena apostar em reprodução maximizada. Como as decisões são sempre tomadas no curto prazo – o espaço entre uma geração e outra –, ninguém se arrisca a ser um super-homem estéril.
4)A teoria evolutiva torna a vida sem sentido?
Eu não sei de onde as pessoas tiram essas idéias… mas OK, sejamos pacientes. De novo, vamos olhar a questão por outro ângulo. Por acaso a ordem divina “Crescei e multiplicai-vos”, no capítulo 1 do livro do Gênesis, deixa as pessoas com a mesma sensação de desespero existencial? Em essência, esse mandamento diz alguma coisa diferente de “Maximizai vossas oportunidades reprodutivas e espalhai vossos genes”, que é basicamente o imperativo da seleção natural? Eu acho que não.
Tanto a versão antiga quanto a versão nova da frase afirmam a mesma obviedade: o traço fundamental da vida é produzir mais vida. Mas nenhuma delas vem acompanhada do adendo “e é só isso, viu. Teve filho, já pode cortar os pulsos”. Melhor ainda, a seleção natural produziu criaturas com sistema nervoso complexo o suficiente para se rebelar contra ela. Não caiamos na falácia naturalista: o que é natural não é necessariamente o certo. E mais: a seleção natural pode muito bem ter forjado nossos instintos para amar nossos amigos, cuidar dos doentes e aflitos, combater injustiças. Ser gentil pode ser uma estratégia evolutiva tão boa quando ser um troglodita. E, mesmo que não seja, ainda somos capazes de identificar o que é certo e fazê-lo, em detrimento de nós mesmos, muitas vezes. Se os nossos genes não gostam, é só mandar eles irem encher o saco da nonna.
5)Por que novas espécies não foram criadas em laboratório?
Peço licença para discordar: novas espécies foram, sim, criadas, e nem precisamos de laboratório. Fizemos isso com tecnologia da Idade da Pedra. Estou falando dos animais e plantas domésticos.
Se você duvida, compare o milho verde que você adora comer com manteiga (você, bem-entendido; tenho um nojo danado de derivados dessa planta dos infernos, sou completamente milhófobo) com o teosinto, a planta mexicana que deu origem a ele. As diferenças biológicas são gritantes. Compare também um poodle ou um siamês com suas contrapartes não-domesticadas, os lobos e os gatos-selvagens. Se um biólogo de Marte tivesse de classificar esses pares, eles indubitavelmente seriam vistos como espécies diferentes – as distinções morfológicas e comportamentais são tão grandes quanto as que existem entre um lobo e uma raposa, que todos consideramos como membros de espécies diferentes.
"Espere aí", dirá você. "Dá pra cruzar lobos e cães, e eles têm descendentes. Isso quer dizer que são da mesma espécie." Atualize-se, nobre leitor: sabemos hoje que as barreiras entre espécies não são os muros absolutos postulados antigamente. É preciso o acúmulo gradual e lento de diferenças genéticas para que o intercruzamento se torne totalmente inviável. Mas nem por isso as espécies capazes de produzir híbridos deixam de ser espécies distintas. Leões e tigres podem ter filhotes se cruzados, mas as diferenças comportamentais, físicas e ecológicas são tão grandes que, na natureza, a hibridização sempre será um evento raro, por puro isolamento físico. As espécies domesticadas que forjamos são, para todos os efeitos e propósitos, espécies criadas artificialmente.
6)Se os cientistas discordam sobre a evolução, por que eu devo confiar na idéia?
Os cientistas discordam sobre as origens cosmológicas da gravidade, e nem por isso as maçãs deixaram de cair na cabeça das pessoas Reino Unido afora. É preciso discernimento para entender o que as controvérsias científicas realmente querem dizer.
Isso pode ser um choque para quem tem uma visão meio idealizada da ciência, mas debates sobre uma determinada teoria são indícios da vitalidade do meio científico, e não de sua suposta esclerose. Por definição, toda idéia em ciência está sujeita a múltiplos testes, confirmações e, se for necessário, refutações. Não existe – ou pelo menos não deve existir – argumento de autoridade. Melhor ainda: mesmo que idéias mais antigas sejam modificadas, seus insights, se tiverem sido obtidos de maneira sólida, são incorporados na nova encarnação da área. Ainda falando de gravidade, hoje sabemos que a relatividade geral de Einstein descreve melhor essa força do que a mecânica de Newton, mas isso não invalida o fato de que, em escalas do dia-a-dia, a descrição newtoniana ainda é essencialmente válida.
Voltando à evolução: os biólogos podem discordar quanto ao peso da seleção natural como força evolutiva, colocando mais ou menos peso em fatores como tendências embriológicas, influências moleculares “lamarckistas”, fatores estocásticos (aleatórios) etc.; podem não ter certeza sobre a origem de certos grupos animais ou vegetais. Mas o fato de que a evolução ocorreu, ainda ocorre e foi o mecanismo responsável por originar a diversidade da vida ao nosso redor é incontestável.
Há pontos em que a teoria evolutiva ainda não produziu um modelo confiável, como a origem das primeiras células vivas a partir de moléculas orgânicas simples. Mas é complicado argumentar por ignorância. Nada impede que bons modelos surjam no futuro; por isso, é prematuro dizer que a biologia evolutiva falhou nesse caso quando vemos que ela triunfou em tantos outros problemas espinhosos. Deixa o homem trabalhar, como dizem por aí.
7)Como explicar a falta de “elos perdidos” ligando as formas de vida?
Será que não há “elos perdidos” mesmo? De novo, depende de como você coloca a questão. Tomando como exemplo a nossa própria linhagem, a dos hominídeos, a impressão que eu tenho é que o problema não é a falta de elos, é o excesso deles. Temos uma seqüência contínuas de formas que são apenas um pouco diferente de nós e parecem se tornar cada vez mais simiescas conforme avançamos no tempo evolutivo, rumo à provável data de separação entre a nossa linhagem e a dos chimpanzés e bonobos, há uns 6 milhões de anos.
Ainda temos problemas para ordenar todos esses bichos, em parte porque alguns fósseis são meros cacos. Nem todas as espécies se preservam no tempo geológico, o que atrapalha um pouco. Mas a gradualidade de diferenças, o aspecto “passo-a-passo” das mudanças, é indiscutível. O mesmo vale para inúmeros outros grupos, como as aves e as baleias, e até para características complexas compartilhadas por inúmeras espécies, caso do nosso ouvido médio.
Isso quer dizer que temos “elos perdidos” para todos os grupos de seres vivos? É claro que ainda não. Mas a existência de exemplos claros e bem elucidados indica que alguma forma de gradualismo evolutivo é uma realidade da vida na Terra.
8)Como mutações aleatórias podem dar origem a características complexas?
Os cientistas estão apenas começando a elucidar isso, mas já possuem algumas respostas interessantíssimas. O caso é que dificilmente um organismo “desenvolve” um gene exclusivamente para uma função. Aliás, é comum que nem mesmo novos genes sejam necessários: bastam alterações em elementos reguladores, que controlam a freqüência ou a intensidade da ativação de um gene, para que haja mudanças significativas na biologia de um organismo. Esse, aliás, parece ser o caso da diferença entre os genes ativos no cérebro humano e os genes ativos no cérebro dos chimpanzés.
Além disso, é comum que alterações evolutivas no DNA sigam o lema de Lavoisier: nada se cria, tudo se transforma. Os genes que carregamos formam “famílias” – o que significa que, tal como as espécies vivas, eles também podem ser classificados por redes de parentesco. Originalmente, um único gene passou por uma duplicação, dando origem a dois ou mais genes “filhos”, muito parecidos. Se um deles mantinha a função original, o outro ficava temporariamente livre do cabresto da seleção natural – afinal, era redundante mesmo – e podia, com o tempo, assumir funções novas. Em alguns casos, genomas inteiros se duplicavam – é o que parece ter ocorrido na origem dos vertebrados.
9) A vida na Terra não pode ter sido “semeada” por seres do espaço?
Essa é curta, mas apenas porque se trata de uma questão de lógica básica. Vamos supor que sim. Somos todos experimentos de biologia alienígena, colocados aqui por seres cabeçudos de Andrômeda. OK. Agora me conta como eles surgiram, pra começar.
Percebeu a falácia inerente ao argumento? A não ser que a gente queira postular uma série infinita de aliens experimentadores, isso tem de parar em algum lugar. Se processos naturais deram origem à biodiversidade terrestre, processos naturais muito provavelmente estão por trás da biodiversidade alien. Recuar o problema não equivale a resolvê-lo.
10) Acreditar na evolução não equivale a renegar Deus?
Não se deixe enganar pelo palavrório fundamentalista dos dois lados (deitado à farta por religiosos conservadores e por sujeitos como Richard Dawkins): a teoria da evolução não “matou” Deus. Deixa eu repetir: a teoria da evolução NÃO MATOU DEUS.
A única coisa que a biologia evolutiva “matou” foi a idéia de que as espécies vivas surgiram no planeta exatamente como diz o livro do Gênesis, por um ato direto de intervenção divina e exatamente na forma que elas têm hoje. Isso é ponto pacífico: não dá para dizer que não temos ancestrais mais primitivos nem que fomos diretamente formados pela mão do Criador da maneira que somos hoje.
Agora, só os desonestos e/ou intolerantes são capazes de sustentar que isso invalida a idéia de um Criador que impôs leis que regem o Universo e que, no fim das contas, dariam origem à vida por meio da evolução. Trata-se de uma questão de fé – e, como tal, não é possível prová-la ou desprová-la por meio do método científico. O que, do ponto de vista religioso, parece um bocado bom: se Deus impusesse sua presença no Universo de forma a ser impossível duvidar de sua existência, que lugar haveria para a fé?

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